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Semiose, Corpo e Cultura

  • Foto do escritor: Ronan Cardoso
    Ronan Cardoso
  • 5 de jan.
  • 7 min de leitura

Ronan Silva Cardoso – Pesquisador Independente

 

 

 

Mente, corpo e sociedade são manifestações de um processo semiótico contínuo de produção de significado: a semiose. A cultura e a linguagem humanas, por exemplo, não são exceções desvinculadas da natureza, mas parte de um amplo continuum sígnico que permeia todos os organismos, como uma característica inerente à vida. Paul Cobley, em Implicações Culturais da Biossemiótica, critica visões antropocêntricas (que colocam o homem no centro) e glotocêntricas (que privilegiam a linguagem articulada humana), argumentando que língua, cultura e comunicação são fenômenos naturais imbricados em processos semióticos biológicos mais amplos.


Cada espécie vive em seu Umwelt, um “mundo-próprio” definido por suas capacidades sensoriais e signos significativos: por exemplo, o Umwelt de um cão, sensível a sons de alta frequência, difere do Umwelt humano, mais focado em frequências baixas, de modo que cada espécie constrói uma realidade experiencial distinta a partir da semiose. A semiose em si, conforme a semiótica peirceana, envolve uma relação triádica entre um Representâmen (um signo ou representação), um Objeto (aquilo que o signo representa) e um Interpretante (o conceito ou efeito interpretativo gerado na mente). Humanos, além de participarem da semiose como qualquer ser vivo, possuem uma consciência semiótica desenvolvida – ou seja, a capacidade de reconhecer os signos como signos, abstraindo-os de seu uso prático imediato e refletindo sobre a natureza simbólica da experiência.


Essa consciência semiótica, segundo Cobley, exige superar obstáculos filosóficos como a ideia kantiana de que a “coisa em si” é incognoscível, resgatando abordagens realistas anteriores a Descartes (como o tomismo de John Poinsot) para reconhecer que os signos nos conectam à realidade. Em outras palavras, os seres humanos podem compreender que vivem imersos em representações.


Dentro dessa perspectiva biossemiótica, o conceito de código ganha novos contornos. Tradicionalmente, na semiologia saussuriana, via-se a língua como um código fixo de signos arbitrários (um sistema subjacente de regras que ligam significantes a significados). Cobley, apoiando-se em semioticistas como Thomas A. Sebeok e H. Eco, questiona a “falácia do código fixo” – a suposição de que a comunicação depende de regras pré-determinadas e inflexíveis. Em vez disso, os códigos são entendidos como convenções maleáveis e hierárquicas que envolvem interpretação ativa. Sebeok identifica vários códigos na natureza – do código genético e imunológico ao neural e verbal – e Marcello Barbieri fala em “códigos orgânicos”, ressaltando que mesmo processos biológicos possuem uma dimensão interpretativa.


Por exemplo, o significado da palavra “maçã” não está fixo em sons ou letras, mas emerge da associação entre o objeto mental da fruta e o objeto mental da palavra pelo código da língua.


Assim, embora existam sistemas de correspondência (códigos), a semiose não se resume a eles; todo signo requer um intérprete que lhe dê sentido em determinado contexto. Essa visão dilui as barreiras entre códigos “naturais” e “culturais”, mostrando que a própria vida é tecida por códigos e signos interconectados. Ademais, a Biossemiótica argumenta que a diferença entre a linguagem humana e a comunicação não-humana é de grau e tipo, não uma ruptura absoluta: a linguagem humana tem capacidades únicas (como símbolos aninhados e recursividade, que criam um “nicho simbólico” de imaginação de mundos possíveis), mas ela evoluiu a partir de formas mais simples de semiose e continua compartilhando princípios com as demais. Com a linguagem, os humanos modelam seu mundo e até “brincam” com esses modelos mentalmente, o que lhes dá uma flexibilidade inédita; ainda assim, essa liberdade simbólica permanece enraizada na continuidade biológica.


Tanto a Biossemiótica quanto as teorias da cognição corporificada enfatizam continuidades em vez de dicotomias. A Biossemiótica derruba a divisão cartesiana entre natureza e cultura, enquanto a cognição corporificada derruba a divisão mente/corpo. Em vez de ver o corpo como mero invólucro da mente, pesquisas contemporâneas mostram que o corpo é constitutivo da própria mente e do conhecimento. Cliodhna O’Connor, em O Corpo e a Construção Social do Conhecimento, argumenta que o corpo humano não é um receptáculo passivo de influências sociais, mas um agente ativo na construção, internalização e expressão do conhecimento social.


Aqui entra a teoria das representações sociais, de Serge Moscovici, que O’Connor combina à perspectiva da incorporação: o conhecimento, para além de individual, é construído coletivamente por meio de signos, símbolos e entendimentos compartilhados na sociedade. Esses significados coletivos não pairam no ar – eles são incorporados nos hábitos, práticas e normas que moldam nossos corpos e comportamentos. Por exemplo, muitas sociedades ocidentais valorizam a disciplina corporal e o autocontrole: espera-se que os indivíduos regulem seus desejos corporais (como apetite, sexualidade ou uso de substâncias) em conformidade com certos ideais. Exercitar restrição nesses domínios sinaliza disciplina e autodomínio – qualidades altamente valorizadas – ao passo que “entregar-se” às indulgências sensoriais é visto como falha moral. Consequentemente, quem foge às normas corporais pode ser alvo de estigmatização: grupos rotulados de “indisciplinados” ou “incontinentes” (pessoas acima do peso, que fogem à norma sexual ou com dependência química, por exemplo) tendem a ser depreciados e marginalizados.


Nesse processo, o corpo torna-se um símbolo vivo de virtude ou desvios conforme representações sociais vigentes – uma demonstração concreta de como o conhecimento social (no caso, noções de virtude, pureza, desvio e identidade de grupo) é incorporado e expresso fisicamente. As atitudes intergrupais fornecem inúmeros casos ilustrativos: preconceitos e estereótipos frequentemente se manifestam por meio de reações corporais (aversão, atração, vigilância) e práticas sociais que envolvem o corpo, desde códigos de vestimenta até políticas de segregação. Em suma, o que pensamos sobre outras pessoas está ligado ao que sentimos e fazemos em relação a seus corpos e aos nossos. A encarnação do conhecimento social significa, portanto, que ideias e valores coletivos ganham vida através dos corpos – seja impondo comportamentos (como gestos de respeito, vestimentas, restrições alimentares) ou servindo de base para distinguir “nós” e “eles” através de traços corporais.


Para construir uma síntese entre mente, corpo e sociedade, O’Connor apoia-se em bases teóricas variadas: a filosofia da mente incorporada de Mark Johnson e George Lakoff (que mostra como conceitos abstratos derivam de metáforas corporais), a fenomenologia de Merleau-Ponty (que enfatiza a experiência vivida do corpo) e a psicologia social de Moscovici (teoria das representações sociais). Essa abordagem multidisciplinar ecoa, em outro registro, o esforço biossemiótico de Cobley de dialogar com diversas áreas – da biologia evolutiva à teoria semiótica – para dissolver barreiras conceituais.


De fato, ambos os enfoques – Biossemiótica e incorporação/representações sociais – convergem em rejeitar o dualismo cartesiano mente-corpo e a noção de que cultura e natureza são domínios separados. Em vez disso, propõem uma visão contínua e contextual da produção de conhecimento e significado. Na Biossemiótica, não há corte absoluto entre o biológico e o cultural: a vida é sígnica por natureza, e fenômenos culturais como a linguagem, a ética ou a arte são entendidos como extensões complexas de processos semióticos evolutivos. Simetricamente, na perspectiva da cognição corporificada e do conhecimento social, não há separação absoluta entre o mental e o corporal: a mente estende-se no corpo e no mundo, e aquilo que sabemos resulta de nossa interação corporificada com um ambiente social e simbólico. Ambos enfatizam também a importância do contexto na geração de significado: assim como o sentido de um signo para um organismo só se entende considerando seu Umwelt específico, o sentido de uma ideia ou conhecimento social só se compreende dentro do contexto histórico-cultural e das práticas compartilhadas que lhe dão forma. Em ambas as visões, o ser humano é visto como um ser interpretativo por excelência – um interpretante habitando simultaneamente um nicho biológico e um nicho social.


Semiose, cultura, corpo e conhecimento social estão intrinsecamente interligados. A cultura pode ser vista como um grande processo de semiose coletiva, no qual símbolos, linguagens e códigos partilhados constroem realidades sociais; essa construção, por sua vez, ocorre através de corpos situados que incorporam e reproduzem tais significados. A endossemiose – os diálogos sígnicos internos ao organismo, desde comunicações celulares até processos neurais, lembra que mesmo nossa cognição mais íntima depende de sinais corporais; e a escala social amplia isso, mostrando que ideias se efetivam por meio de interações e comportamentos observáveis. A biossemiótica nos convida a reconhecer uma continuidade evolutiva: por exemplo, o conceito de nicho semiótico propõe que os organismos não apenas se adaptam passivamente a um meio ambiente (nicho ecológico), mas interpretam ativamente os signos do meio, alterando criativa e imprevisivelmente as pressões seletivas. Isso confere a todos os seres vivos um grau de liberdade semiótica, uma capacidade de escolha interpretativa que, nos humanos, atinge seu ápice graças à linguagem simbólica. Já a perspectiva da incorporação destaca que essa liberdade humana é sempre mediada pelo corpo: nossa criatividade, memória e mesmo a ética ganham forma a partir de experiências corporais compartilhadas.


Cobley sugere, por exemplo, que a biossemiótica pode levar a uma reavaliação de conceitos como liberdade, subjetividade, estética e ética numa chave menos antropocêntrica – um deslocamento semelhante ao que a incorporação traz ao recolocar o corpo (e não apenas a razão abstrata) no centro da compreensão do conhecimento. Ambos os projetos trazem implicações críticas: a Biossemiótica, ao reconhecer a natureza sígnica de toda a vida, propõe superar a “metafísica da maldade” e fomentar uma ética biocêntrica, de responsabilidade do humano para com os outros seres vivos; por sua vez, integrar corpo e representações sociais ilumina fenômenos como estigma, identidade social, saúde e comportamento sob um novo prisma, permitindo intervenções mais eficazes que considerem tanto fatores simbólicos quanto corporais. Em resumo, semiose e cultura andam juntas – a cultura é feita de signos – e cognição corporificada e conhecimento social também andam juntos – o que sabemos do mundo social nasce de nossa corporalidade em interação.


Longe de esferas isoladas, esses conceitos formam um circuito único: os signos (semiose) ligam os organismos ao meio e uns aos outros; a cultura emerge desses signos compartilhados; o corpo é o veículo e mediador indispensável dessa semiose cultural; e o conhecimento social é o resultado dinâmico desse processo, ao mesmo tempo produto e produtor de signos incorporados. Ao reconhecer essas relações, adquirimos uma visão mais integrada e abrangente da cognição humana, da sociedade e da própria vida: entendemos que somos seres biológicos que significam e seres sociais que incorporam sentidos – em suma, organismos semióticos destinados a viver em semiose.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

COBLEY, Paul. Cultural Implications of Biosemiotics. Dordrecht: Springer Netherlands, 2016. (Biosemiotics, 15). DOI: 10.1007/978-94-024-0858-4.

O'CONNOR, Cliodhna. Embodiment and the Construction of Social Knowledge: Towards an Integration of Embodiment and Social Representations Theory. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 47, n. 1, p. 2-24, 2017. DOI: 10.1111/jtsb.12110. 9

 
 
 

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