O Perigo das Narrativas de Dominação da Natureza
- Ronan Cardoso
- 5 de mai.
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Ronan Silva Cardoso - Pesquisador Independente
Pouco antes do alvorecer da ciência moderna, inaugurou-se uma narrativa de dominação da natureza que associava conhecimento com poder e progresso humano. Francis Bacon foi um dos grandes artífices dessa visão: propôs, em Novum Organum, que a finalidade do saber científico era ampliar o domínio humano sobre o mundo natural, recuperando a harmonia perdida após a “Queda” bíblica. Para Bacon, a natureza era algo exterior à humanidade, um objeto a ser interpretado e manipulado metodicamente para nosso benefício. A ciência, munida do método indutivo e da experimentação, deveria oferecer meios para a dominação da natureza, subjugando-a às necessidades humanas e inclusive refreando os excessos da própria natureza humana, como a avidez e os desejos desordenados.
Logo no início da obra citada, F. Bacon chega a afirmar que “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece” (Aforismo 3 do Livro 1). Ou seja, ao desvendar as leis naturais (obedecendo-as intelectualmente), o ser humano poderia vencê-la, tornando-se “senhor da natureza”. Tal projeto baconiano carregava até uma justificação teológica – dominar a natureza seria um dever outorgado por Deus para resgatar a condição paradisíaca original da humanidade. Bacon reafirma essa ideia ao longo dos livros 1 e 2 da obra Novum Organum:
“Por último, se se objetar com o argumento de que as ciências e as artes se podem degradar, facilitando a maldade, a luxúria e paixões semelhantes, que ninguém se perturbe com isso, pois o mesmo pode ser dito de todos os bens do mundo, da coragem, da força, da própria luz e de tudo o mais. Que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divina. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião.” (Aforismo 129 do Livro 1)
O último parágrafo do último aforismo do livro 2, concluindo a obra, não deixa espaço para dúvidas:
“Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda nesta vida; a primeira com a religião e com a fé, a segunda com as artes e com as ciências.” (Aforismo 52 do Livro 2)
Esse ideal de Bacon moldou profundamente a cultura científica e tecnológica do Ocidente. Karl Popper, filósofo da ciência no século XX, analisa com acuidade tanto os méritos quanto as limitações desse legado baconiano. Popper observa que, historicamente, “a promessa de um futuro científico esplêndido” feita por Bacon exerceu enorme influência: inspirou a criação de sociedades científicas (como a Royal Society) e alimentou a Revolução Industrial, uma revolução “filosófica e religiosa, com Bacon como seu profeta”, dedicada a acelerar o avanço da tecnologia “para a glória de Deus [...] e vantagem da raça humana”. Popper, em sua obra O Mito do Contexto, analisa criticamente a produção intelectual e influência de Francis Bacon:
Bacon, sugiro, não era um cientista, mas um profeta. Era um profeta, não apenas no sentido de que propagou a ideia de uma ciência experimental, mas também no sentido de que previu e inspirou a revolução industrial. Teve a visão de uma nova era, uma era industrial que seria também a era da ciência e da tecnologia. Ao referir-se à descoberta acidental da pólvora, e à da seda, falou da possibilidade de uma busca científica sistemática de outras substâncias e materiais úteis e de uma nova sociedade na qual, graças à ciência, os homens encontrariam a libertação da miséria e da pobreza. Assim, a nova religião da ciência continha uma promessa nova de céu na terra - de um mundo melhor que, com a ajuda do novo conhecimento, os homens criariam por si próprios. Conhecimento é poder, afirmou Bacon, e esta ideia, ideia perigosa, do domínio do homem sobre a Natureza - de homens semelhantes a deuses - foi uma das ideias mais influentes através das quais a religião da ciência transformou o nosso mundo. (p. 113)
De fato, o projeto baconiano originalmente combinava progresso técnico com objetivos humanitários: pretendia aumentar o bem-estar geral e combater a pobreza por meio da ciência aplicada. No entanto, Popper também critica aspectos centrais dessa visão. Ele afirma sem rodeios que Bacon estava enganado quanto ao método e ressalta que grandes cientistas, como Galileu ou Newton, não seguiram a receita indutivista baconiana. Popper, sobretudo, aponta o excesso de “otimismo epistemológico” contido na suposição de que a verdade se revelaria de forma manifesta pela acumulação ordenada de observações.
Para Popper, a crença baconiana em verdades garantidas pela indução era “um belo e esperançoso sonho”, porém equivocado. A história da ciência mostra, segundo Popper, que frequentemente julgamos ter a verdade em mãos quando na realidade estamos enredados em . Essa postura falibilista de Popper introduz uma nota de cautela: ela sugere que a confiança desmedida em nossa capacidade de controlar a natureza pode mascarar graves enganos e consequências inesperadas.
A quem, então, servem as narrativas de dominação da natureza, e quem delas se beneficia ou sofre? Inicialmente, Bacon e seus sucessores viam-nas como servindo à humanidade em geral, libertando-nos da miséria e da ignorância por meio do progresso técnico-científico. Contudo, ao longo dos séculos, tornou-se claro que os frutos desse projeto foram distribuídos de forma desigual. As mesmas ideias de “conquistar a natureza” e de que “conhecimento é poder” também foram empregadas para justificar o pensamento colonial e a exploração intensiva de pessoas e recursos, em benefício de elites políticas e econômicas.
A filósofa e ativista Vandana Shiva, em Monoculturas da Mente, mostra de modo incisivo como essa mentalidade de dominação foi exportada globalmente, servindo sobretudo aos poderosos. Políticas de desenvolvimento agrícola impostas no Sul global cristalizaram verdadeiras “monoculturas da mente”, isto é, ideologias reducionistas que exaltam a ciência ocidental e a tecnologia industrial como únicas formas válidas de saber e produzir. Sob essa ótica, sistemas tradicionais de agricultura – muitas vezes sustentáveis e adaptados localmente – foram declarados atrasados ou ineficientes, ao passo que monoculturas intensivas e biotecnologias proprietárias foram promovidas como solução universal. Grandes empresas multinacionais e governos alinhados conduziram uma verdadeira cruzada para convencer populações de que não haveria alternativa senão submeter-se a esse modelo.
Os beneficiários dessas narrativas são, pois, os grupos hegemônicos: corporações do agronegócio, latifundiários, potências industriais – em resumo, aqueles que controlam a produção e lucram com a exploração de recursos. Por meio das “monoculturas da mente”, escreve Shiva, “a exploração dos mais fracos é assegurada”.
Quem sofre são os pequenos agricultores, as comunidades tradicionais e povos indígenas, cujos meios de subsistência e saberes milenares são frequentemente atropelados por essa visão única de progresso. Sofre também o próprio meio ambiente: a imposição de monoculturas e práticas predatórias leva à erosão genética, à perda de biodiversidade e à degradação do solo e da água – consequências justificadas em nome de uma suposta superioridade técnica. Historicamente, narrativas de dominação permitiram que se visse a natureza (e mesmo povos inteiros) como “selvagens” a domesticar. Isso moldou culturas inteiras, especialmente na era colonial e industrial, inculcando a ideia de que terra virgem é terra inútil até ser explorada. Injustiças graves foram cometidas sob esse credo: desde a apropriação de terras indígenas e a devastação de florestas, até a criação de economias dependentes e desiguais no cenário pós-colonial.
Shiva chama a atenção para esse fenômeno de um modelo hegemônico que, apesar de produzir mais mercadorias, aprofunda a pobreza e a exclusão social, chegando ao paradoxo de gerar “mais fome” mesmo quando há mais alimentos produzidos. Em suma, a retórica do domínio da natureza tem servido frequentemente de máscara para imperativos de poder – um “bioimperialismo” tecnocêntrico que beneficia poucos e externaliza seus custos sobre muitos.
Diante desse diagnóstico, surge a questão crucial: é possível construir um mundo que compreenda e respeite a complexidade das relações entre humanidade e natureza e, ainda assim, tenha espaço para avanços científicos? Vandana Shiva argumenta que não só é possível, como é a única via para um verdadeiro desenvolvimento. Isso exige uma profunda mudança ética e epistêmica nas narrativas de progresso. O progresso científico pode e deve ocorrer, mas orientado por princípios de sustentabilidade e justiça. Em vez de uma monocultura, precisamos de biodiversidade – não apenas nos campos, mas nas maneiras de pensar. Shiva defende o conceito de biodemocracia, uma democracia ecológica na qual múltiplas formas de vida e conhecimento têm voz e valor:
“A biodemocracia envolve o reconhecimento do valor intrínseco de todos os seres vivos e seu direito inerente ao êxito. Envolve também o reconhecimento das contribuições e direitos originais de comunidades que co-evoluíram com a biodiversidade local.” (p. 115)
Sob essa perspectiva, devemos reconhecer o alto valor dos conhecimentos tradicionais e integrá-los com inovações apropriadas. Agricultores locais, com sua experiência secular, podem combinar técnicas ancestrais com biotecnologias adequadas, desde que estas respeitem os ciclos naturais e as necessidades sociais. Em termos éticos, é preciso abandonar a arrogância antropocêntrica de que a humanidade está separada e acima da natureza. No lugar dela, deve emergir uma ética da interdependência e do respeito por todas as formas de vida. Essa virada ética implica ver a natureza não mais como inimiga a ser subjugada, mas como parceira e mestra – fonte de conhecimento, sim, mas também sujeito de direitos em certa medida.
A narrativa do domínio dá lugar à narrativa do cuidado e da corresponsabilidade. Somente com tal mudança de valores poderemos continuar perseguindo avanços científicos sem repetir os abusos do passado. Um mundo que respeite a complexidade ecológica não renuncia à ciência, mas a coloca num contexto mais amplo de responsabilidade planetária.
A filosofia contemporânea tem fornecido bases ontológicas para essa reorientação. Emanuele Coccia, em A Vida das Plantas, oferece uma visão radicalmente integradora da relação entre vida e ambiente que subverte a noção de separação entre o humano e a natureza. Coccia destaca que as plantas, frequentemente menosprezadas na hierarquia tradicional dos seres, são na verdade centrais na teia do mundo: elas constituem a brecha na autorreferência da vida, pois conseguem viver diretamente do elemento não-vivo (minerais, ar, luz) e assim “fazem o mundo” habitável para os demais seres. De fato, quase toda a biomassa terrestre e a base das cadeias alimentares provêm das plantas.
Essa constatação leva Coccia a uma ideia poderosa: não existe um mundo natural inerte separado dos seres vivos, o mundo é um produto da vida. A presença da vida transforma a matéria e até o espaço em algo novo. Ele observa, por exemplo, que não é apenas o ser vivo que se adapta ao meio:
“O mundo só existe ali onde há ser vivo. E a presença da vida transforma a própria natureza do espaço. (...) não cabe mais ao vivente se adaptar às circunstâncias ambientais, as circumfusa da medicina neohipocrática, e sim ao ambiente em sua totalidade tornar-se eco, halo, auréola da massa dos vivos. Sua atmosfera.” (p. 61)
Em outras palavras, ambiente e organismo se co-constroem. Coccia ilustra essa interdependência dizendo que animais e plantas constituem sistemas complementares: os animais consomem oxigênio e liberam gás carbônico, enquanto as plantas fazem o inverso, num ciclo químico em que ambos os reinos são “verdadeiras dependências da atmosfera”. “Não habitamos a terra, habitamos o ar através da atmosfera. Estamos imersos nele exatamente como o peixe está imerso no mar”, escreve Coccia, ressaltando que nossos corpos e o meio atmosférico formam uma continuidade indivisível.
Essa metáfora vívida rompe definitivamente com a imagem da natureza como cenário externo: nós literalmente somos parte do ambiente que tentamos dominar. Ademais, Coccia argumenta que a vida sempre opera em escala cósmica – não restrita a nichos isolados –, tecendo uma única atmosfera compartilhada por todos. Essa visão cosmológica da ecologia revela uma verdade ontológica fundamental: a humanidade não pode se conceber separada da rede de outros seres, pois nossa existência é apenas um modo dentro da grande “metafísica da mistura” que é a vida na Terra. Se adotarmos essa compreensão, as narrativas de conquista perdem sentido – não se conquista aquilo do qual se é parte integrante.
Assim, reconsiderar quem somos nós na natureza muda radicalmente nosso destino. A maneira como entendemos a natureza influencia profundamente o porvir da humanidade. Sob a ótica da dominação, agimos como se fôssemos externos ao mundo vivo, explorando-o sem considerar limites – e os resultados têm sido crises ambientais, desequilíbrios climáticos e injustiças socioecológicas que, em última instância, ameaçam a própria sobrevivência humana. Não por acaso, a era atual nos força a confrontar os limites desse paradigma: eventos como mudanças climáticas e pandemias evidenciam a interconexão entre o bem-estar humano e a saúde dos ecossistemas.
Para a Ecofilosofia, se entendermos a natureza como uma comunidade de sujeitos interdependentes, abrindo-nos a uma visão ecocêntrica, podemos traçar um destino diferente. Isso não significa abrir mão da ciência ou do progresso – significa redefini-los. Implica orientar a ciência por perguntas inspiradas na cooperação com a natureza, não na sua subjugação. Implica também incorporar múltiplas vozes e formas de conhecimento (científico, tradicional, local) na construção de soluções. Em vez de uma “utopia baconiana” de riqueza material ilimitada, o futuro passa a ser imaginado como uma realidade ecológica, na qual tecnologia e conhecimento caminham lado a lado com sabedoria ecológica e ética do cuidado.
A transição de uma narrativa de domínio para uma narrativa de convivência já se esboça nas críticas de autores como Popper, Shiva e Coccia – críticas estas que nos convidam a abandonar mitos ultrapassados e a reconhecer, humildemente, que nosso poder sobre a natureza jamais será absoluto ou isento de consequências. Somente ao respeitar a intrincada tapeçaria da vida é que o progresso humano poderá encontrar um significado duradouro, beneficiando a todos os habitantes do planeta e não apenas a uns poucos. Em síntese, o desafio contemporâneo é reconciliar o conhecimento com a sabedoria: aprender, enfim, a habitar o mundo em parceria com a natureza, e não em guerra contra ela.
Referências Bibliográficas
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Nova Cultural, São Paulo, 1999.
COCCIA, Emanuele. A Vida das Plantas: uma metafísica da mistura. Cultura e Barbárie, Florianópolis, 2018.
POPPER, Karl. O Mito do Contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Edições 70, Lisboa, 1999.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Gaia, São Paulo, 2003.
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