Aproximações entre a Ecofilosofia de Coccia e a Biopoética de Weber
- Ronan Cardoso
- 5 de abr.
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Ronan Silva Cardoso - Independent Scholar
Uma visão científica tradicional tenta separar o ser humano da natureza, como se fôssemos hóspedes em um mundo inerte. No entanto, pensadores contemporâneos como Andreas Weber e Emanuele Coccia propõem uma perspectiva radicalmente diferente: para eles, o corpo humano e o corpo do planeta formam uma continuidade viva e interdependente. Inspirada pelas ideias de Weber (em The Biology of Wonder) e Coccia (em A Vida das Plantas), esta tessitura explora relações entre o nosso humano organismo e o planeta Terra, com a respiração como produtora de um espaço de misturas que permeia toda a vida.
O Corpo Humano e o Corpo do Planeta: Interdependência
Nosso corpo não é uma entidade isolada; ele reflete e contém elementos do próprio planeta. Não tomamos apenas a matéria do planeta emprestada para existirmos: nós aprendemos a ser com suas forças e formas. A vida aprendeu com os rios a viver fora do mar, a ser rio, também, e transportar, nutrir e transformar movimento, água, em sangue, em ciclo.
Andreas Weber observa que carregamos dentro de nós o legado do oceano primordial: o plasma salgado que circula em nossas células é um “mar interior”, eco direto dos mares ancestrais (Weber, 2016). Em outras palavras, “o oceano tem se dobrado para dentro de nós”, preenchendo nosso sangue com sua memória salina (Weber, 2016). Assim como o sangue humano guarda essa herança marítima, o corpo da Terra também possui componentes análogos aos de um organismo: o ciclo biogeoquímico da água pode ser visto como um fluido vital compartilhado e o solo como “uma pele suave que cobre um corpo fértil, porém vulnerável” (Weber, 2016). Essa imagem sugere que a Terra, tal qual um grande organismo, tem sua epiderme e seu sistema circulatório, dos quais fazemos parte.
Essa interconexão fica evidente quando pensamos no papel das plantas na história do planeta. Coccia relembra que a vida vegetal transformou para sempre a face da Terra. Foi através da fotossíntese das plantas que nossa atmosfera passou a ter oxigênio abundante, tornando possível a respiração dos animais (Coccia, 2016). É “por e através” das plantas que o planeta produz o ar que enche nossos pulmões e “faz respirar os seres que cobrem sua pele” (Coccia, 2016). Em outras palavras, a Terra “respira” por meio das plantas, e nós, animais humanos, só respiramos graças a essa simbiose antiga. O corpo planetário e o corpo humano encontram-se, assim, em comunhão: compartilhamos a mesma base material (água, minerais, gases) e dependemos uns dos outros em uma teia de trocas contínuas.
Respiração: Mergulho no Oceano Atmosférico
O ato de respirar é como um mergulho no invisível oceano de partículas que envolve o mundo. Ao inspirarmos, não apenas enchemos os pulmões: nós nos fundimos momentaneamente com a atmosfera global, compartilhada por todos os seres vivos. Emanuele Coccia define a respiração justamente como um ato de intercâmbio profundo entre interior e exterior. O “paradigma dessa imbricação recíproca” é o sopro vital: “o que nos contém, o ar, se torna conteúdo em nós, e, inversamente, o que estava contido em nós se torna o que nos contém” (Coccia, 2016). Respirar é estar imerso no meio ambiente de tal forma que ele nos ocupa ao mesmo tempo que nós o ocupamos, onde, ao mesmo tempo, nos separamos do mundo e a ele nos fundimos (Coccia, 2016). Não há dentro e fora absolutos: o ar circula pelo organismo assim como a água do mar circula por uma água-viva, unindo organismo e ambiente num só sistema fluido.
Do ponto de vista biológico, essa fusão gasosa é tangível. Weber explica que a vida não funciona como uma máquina fechada; ao contrário, somos sistemas abertos em constante troca com o meio. “A cada respiração, todos nós entregamos fragmentos de nosso corpo ao ar circundante e, ao mesmo tempo, incorporamos muitos elementos da Terra em nós” (Weber, 2016). O dióxido de carbono que exalamos agora poderá ser, instantes depois, absorvido pelo interior verde de uma folha, convertendo-se em parte de um capim ou de uma árvore (Weber, 2016). Por sua vez, o oxigênio liberado por algas e florestas distantes atravessa continentes pelo vento até alimentar nossas células a cada inspiração. Coccia chega a chamar o respirar de “uma primeira forma de canibalismo”, pois “alimentamo-nos diariamente da excreção gasosa dos vegetais” – vivemos do que as plantas expiram (Coccia, 2016). Inversamente, nossa própria expiração alimenta as plantas, num ciclo em que cada fôlego é parte de um sopro coletivo maior. Assim, ao respirar estamos efetivamente participando de um processo de comunhão planetária, uma troca incessante que conecta todos os seres através do ar. O oceano atmosférico é um bem comum e nós, peixes de ar, nadamos nele a todo instante.
Sem Limites Rígidos: Vida Contínua e Interligada
Se o ar escancara nossa interdependência, a própria matéria de que somos feitos reforça a ausência de limites rígidos entre um ser e outro. Aquilo que chamamos de “meu corpo” é, na verdade, uma coleção temporária de átomos emprestados do mundo. Weber ressalta que uma parte profunda do meu ser não é verdadeiramente minha – os elementos físicos que me constituem vieram de outros seres e estão em perpétua metamorfose (Weber, 2016). “A matéria que compõe meu corpo está mudando constantemente”, e essas mudanças me conectam “a todas as outras partículas do universo”. O alimento que ingerimos torna-se nossas células; mais tarde, nossos resíduos e exalações voltarão ao ambiente. Ontem eu era trigo no campo, amanhã serei parte de uma folha verde (Weber, 2016). Nessa dinâmica, o “eu” físico é fluido e compartilhado: cada ser vivo existe apenas porque troca pedaços de si com o restante da vida ao redor. Como conclui Weber, “eu, como todo ser, só posso construir uma identidade porque não possuo verdadeiramente a mim mesmo” (Weber, 2016). A individualidade absoluta é uma ilusão conveniente; na realidade, somos feixes de matéria e energia constantemente entrelaçados com o todo.
Do ponto de vista filosófico, Coccia propõe a imagem de uma imersão total para descrever essa continuidade. Ele sugere que um ser vivo está para o mundo assim como uma água-viva está para o mar que a envolve (Coccia, 2016). Não há separação nítida entre o animal e a água – um permeia o outro o tempo todo. Da mesma forma, não há um corte seco entre nós e o resto do mundo, afirma Coccia. Tudo o que vive encontra-se mergulhado num mesmo meio, influenciando e sendo influenciado. “Permeabilidade é a palavra-chave: neste mundo, tudo está em tudo” (Coccia, 2016). O ar, a água, a luz e os nutrientes atravessam os corpos livremente, costurando cada organismo ao ambiente maior. A água que corre dentro de um peixe hoje, amanhã fluirá em nuvens pelo céu, e depois irrigará o solo, entrando nas raízes de uma planta. Nesse sentido, a vida se manifesta como um processo contínuo e interligado, uma circulação permanente de substâncias e vibrações pela qual cada ser participa do ser do outro. Não existem fronteiras absolutas, apenas interfaces transitórias onde o eu e o outro se encontram e se misturam.
A Conexão Profunda de Toda Vida
Seguindo essas ideias, emerge a visão de que todos os seres vivos integram uma única comunidade existencial. A separação entre organismos é superficial; em profundidade, há uma malha unificada de processos vitais. Weber chega a comparar os indivíduos às cristas de espuma de uma onda: cada criatura é única em forma, mas parte inseparável do oceano da vida (Weber, 2016). A ciência ecológica moderna, desde a hipótese de Gaia de Lynn Margulis até estudos de simbiose, corrobora essa noção ao mostrar que o planeta funciona como um sistema autorregulado e interdependente. Estamos todos “no mesmo barco” biológico. Coccia expressa essa realidade de forma incisiva ao dizer que “só podemos viver da vida dos outros” (Coccia, 2016) – isto é, todo ser vivo depende de outro para existir. Inversamente, cada ser é também aquilo que torna possível a vida dos demais, pois produz algo que nutre ou favorece o próximo (Coccia, 2016). A vida de um organismo transborda de seu próprio contorno e permeia o meio, do qual outros organismos retirarão sustento e significado. Temos, assim, uma única trama contínua, onde a respiração de um alimenta o outro, onde a morte de um libera nutrientes para a vida de outro, onde nada vive ou morre em isolamento.
Reconhecer essa conexão profunda inspira uma nova postura perante o mundo. Se “as fronteiras se dissolvem” e entendemos que somos a natureza tanto quanto ela nos é, surge uma densa sensação de pertencimento ao cosmos (Weber, 2016). Percebemos que cada ser – humano, animal, planta ou micróbio – é um companheiro íntimo na aventura da vida, uma variação de nós mesmos em outra forma. Essa consciência dilui a noção de que existimos à parte do ambiente e nos convida a uma relação de respeito e cuidado, afinal, ferir o mundo é ferir a nós próprios. Weber fala em uma “ecologia poética”, uma ciência que enxerga a Terra como um planeta sensível e respirante, que acolhe todos os seres como parte de uma mesma história (Weber, 2016). Coccia, por sua vez, denomina a condição terrestre de metafísica da mistura, exaltando que a vida é sempre ambiente de si mesma, uma mistura onde sujeitos e mundo se interpenetram.
Por fim, as visões de Weber e Coccia se entrelaçam. A relação entre o nosso corpo e o corpo do planeta, nas obras citadas, é de comunhão ininterrupta. Trazer para um dentro o conteúdo “de fora”, dar-lhe um ciclo, um ritmo, um sentido, uma voz, é uma alquimia que revela como a vida compreende a natureza e a opera para transformar mundo em identidade. Cada suspiro confirma que carregamos dentro de nós um pedaço da atmosfera e devolvemos ao mundo uma parte de nós. Cada limite que pensamos existir – pele, fronteira, indivíduo, espécie – revela-se poroso e relativo diante da contínua troca que é o viver. Que este pensamento possa nos abrir para a responsabilidade e o planejamento que a importância existencial da respiração evoca. Não podemos pensar nossas relações e nossas cidades (o impacto da nossa existência) sem compreendermos o que é, de fato, o oceano-atmosfera, a que o devemos e como o compartilhamos e, ademais, o sentido da nossa existência depende do sentido que damos à natureza: somos somente porque ela é.
Referências
Coccia, Emanuele. La Vie des Plantes: Une Métaphysique du Mélange. Éditions Payot & Rivages, 2016.
Weber, Andreas. The Biology of Wonder: Aliveness, Feeling, and the Metamorphosis of Science. New Society Publishers, 2016.
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