Biossemiótica: Vida como Ação de Signos.
- Ronan Cardoso
- 5 de dez. de 2024
- 8 min de leitura
Ronan Silva Cardoso – Independent Scholar
Introdução
A Biossemiótica é um campo interdisciplinar emergente que une biologia e semiótica (a ciência dos signos) para estudar os processos de significação na vida. Em vez de ver os organismos apenas como máquinas bioquímicas, a Biossemiótica os interpreta como agentes capazes de produzir, comunicar e interpretar signos. Essa abordagem parte da ideia de que os processos vitais são, em sua essência, processos de criação de significado. Como afirmam C. Emmeche e K. Kull, a Biossemiótica reconhece que a vida está fundamentalmente alicerçada em processos semióticos: signos e significados não são exclusividade da linguagem humana, mas permeiam todo o mundo vivo. Historicamente, pensadores como Jakob von Uexküll e Thomas A. Sebeok prepararam o terreno para a Biossemiótica. Uexküll, em 1920, introduziu o conceito de umwelt para descrever o “mundo subjetivo” de cada organismo. Décadas depois, Sebeok ampliou a semiótica para além da esfera humana, propondo que “semiose é o que distingue tudo que é vivo da matéria bruta” (Sebeok 1988). De fato, já em 1968 o biólogo Friedrich Rothschild afirmava que os sistemas vivos, desde sua origem, constituem-se como sistemas de signos. Tais perspectivas realçam a relevância filosófica da Biossemiótica: ela ajuda a vincular a biologia à linguística e à filosofia, oferecendo um arcabouço para entender a vida não apenas em termos físico-químicos, mas também em termos de informação, significado e intencionalidade. Ao adotar essa visão, começamos a superar divisões tradicionais entre mente e matéria, pois consideramos os organismos como sistemas ativos de interpretação de signos, em vez de meros objetos passivos das leis naturais. A seguir, exploraremos os principais conceitos da Biossemiótica – semiose, umwelt, códigos biológicos e a ideia de estrutura e significado da vida.
Semiose: o processo de significação na vida
Semiose é o termo central da Biossemiótica e refere-se ao processo de ação dos signos, isto é, à produção e interpretação de signos que carregam significado. Em linguagem simples, semiose é qualquer processo em que algo significa ou representa outra coisa para um agente. No contexto biológico, isso abrange desde a comunicação animal até a regulação molecular dentro de uma célula. Emmeche e colegas definem semiose como “o processo fundamental que carrega significado e no qual o significado é criado. É um processo onipresente nos seres vivos: tudo que é animado, do mais simples microrganismo ao ser humano, distingue-se da matéria inanimada por estar envolvido em semiose.
Importante ressaltar que a semiose nos organismos não é algo místico ou sobrenatural, mas sim parte natural de sua organização. Por exemplo, uma abelha ao forragear realiza múltiplas semioses: ela sente o odor de uma flor, enxerga sua cor viva à distância, lembra-se do caminho até uma fonte rica de néctar e então “dança” para comunicar essa informação às companheiras na colmeia. Cada etapa desse comportamento envolve signos: moléculas odoríferas, padrões de cor, memórias internalizadas, movimentos comunicativos. Esses signos têm significado para as abelhas (orientam-nas ao alimento) e resultam em ações coordenadas – em outras palavras, formam um processo semiótico essencial para a sobrevivência da colmeia e para a polinização no ecossistema. Casos como esse ilustram vividamente o ponto central da Biossemiótica: os seres vivos não apenas reagem mecanicamente aos estímulos, eles interpretam signos de maneira funcional. Assim, a semiose medeia propósito e causalidade na natureza viva, ligando aspectos físicos (químicos, materiais) a aspectos informacionais (funcionais, comportamentais). Estudar a biologia através da lente da semiose oferece, portanto, um modo de entender como os organismos atribuem sentido ao seu meio e a si mesmos, algo que abordagens puramente físico-químicas não contemplam plenamente.
Umwelt: o mundo percebido pelo organismo
Introduzido pelo biólogo germânico Jakob von Uexküll, o conceito de umwelt designa o “mundo-próprio” de cada ser vivo – isto é, o conjunto das características do ambiente que têm significado para aquele organismo. Diferentes espécies habitam literalmente mundos diferentes, ainda que compartilhem o mesmo ambiente físico. Cada organismo, através de seus sentidos e de sua organização, filtra e interpreta certos aspectos do meio, construindo uma realidade subjetiva funcional para si. O umwelt de um carrapato, por exemplo, resume-se a poucos signos vitais (o odor de ácido butírico que indica a presença de um mamífero, o calor da pele, etc.), enquanto o umwelt de uma abelha inclui cores vivas e padrões ultravioletas das flores, além de fragrâncias específicas – elementos irrelevantes para o carrapato. Em essência, umwelt é o recorte semiótico do mundo feito pelo organismo: são as coisas que para ele “fazem sentido” em termos de sobrevivência e reprodução.
Na perspectiva biossemiótica, perceber o ambiente é um processo ativo de interpretação de signos. A “realidade” de um animal é construída pelos signos que ele consegue distinguir e utilizar. Assim, a interpretação que um organismo faz de seu umwelt é em si um processo semiótico. Considere novamente as abelhas: fatores como o colorido das pétalas ou o perfume de certas flores fazem parte do umwelt da abelha porque seus sistemas sensoriais os distinguem e seu cérebro lhes atribui valor (néctar disponível). Já elementos como a conversa humana ao lado da flor provavelmente não significam nada para a abelha – estão fora do umwelt dela. Cada espécie, portanto, vive em sua “bolha sensorial-semântica” própria. Esse conceito tem relevância tanto biológica quanto filosófica: biologicamente, ajuda a explicar comportamentos específicos de cada espécie com base no que ela percebe como informação; filosoficamente, lembra-nos que nossa experiência de mundo (nosso umwelt humano) é apenas uma dentre muitas, e está mediada por nossas capacidades semióticas. A Biossemiótica incorpora o umwelt em seus modelos para entender como a relação organismo-ambiente é estruturada por signos, desde simples organismos até ecossistemas complexos.
Códigos biológicos: a linguagem da vida
Além de signos perceptíveis no comportamento e no ambiente, a Biossemiótica também investiga sistemas de códigos presentes nos processos biológicos. Um código, em termos semióticos, é um conjunto de correspondências estáveis entre signos e significados (ou funções). Na biologia, o exemplo clássico é o código genético: a relação entre sequências de nucleotídeos e os aminoácidos correspondentes nas proteínas. Esse código molecular permite traduzir informações hereditárias em estruturas funcionais – é uma linguagem bioquímica comum a toda vida terrestre. Emmeche descreve o código genético como o exemplo mais conhecido de um sistema genuíno de signos na vida. De fato, as tríades de bases nitrogenadas (os códons) funcionam como símbolos que representam aminoácidos específicos durante a síntese proteica, um processo semiótico no nível molecular.
Os códigos biológicos, contudo, não se limitam ao DNA. Há uma pluralidade de códigos em diferentes níveis da organização dos sistemas vivos. Por exemplo, além do código digital do DNA, existem códigos regulatórios dinâmicos envolvendo o RNA e outras biomoléculas, que controlam quais genes são ativados ou silenciados. Do mesmo modo, redes de sinalização celular – como as cascatas de comunicação por hormônios, neurotransmissores ou signos imunológicos – operam com base em reconhecimento específico de moléculas, formando uma espécie de linguagem celular. Assim, o corpo de um organismo pode ser visto como um imenso diálogo bioquímico em andamento. Considere a célula, unidade básica da vida: sua membrana plasmática “decide” o que entra e o que não entra na célula através de receptores altamente seletivos. Podemos dizer que a célula reconhece algumas substâncias como “nutritivas”, outras como “perigosas” e outras como neutras, seguindo um código interno de categorização bioquímica. Esse reconhecimento equivale a uma interpretação semiótica em nível molecular: moléculas sinalizadoras se ligam a receptores específicos (signos e significados correspondentes), desencadeando respostas funcionais.
A abordagem biossemiótica, portanto, lança mão da ideia de códigos para explicar como as informações são armazenadas, transmitidas e interpretadas em sistemas vivos. Diferentemente de metáforas ocasionais empregadas na biologia (“código genético”, “linguagem das abelhas”, etc.), a Biossemiótica leva a sério essas analogias e busca fundamentá-las teoricamente. Vida e informação andam juntas: onde quer que haja função biológica, há algum tipo de mensagem sendo processada. A vida se estrutura como uma teia de signos em ação.
Estrutura e significado da vida
A Biossemiótica nos convida a repensar a própria natureza da vida em termos de estrutura e significado. Tradicionalmente, a biologia descreve a estrutura da vida em níveis hierárquicos (genes, células, organismos, ecossistemas) e explica funções através de causas eficientes (mecânicas, físico-químicas). A Biossemiótica acrescenta outra camada: em todos esses níveis, existem processos de semiose conferindo coerência funcional e significado às estruturas. Do ponto de vista biossemiótico, estar vivo é estar constantemente interpretando signos e agindo de acordo com eles. Assim, a estrutura da vida não é apenas composta de moléculas e células, mas também de relações sígnicas – padrões de informação que conectam as partes num todo significativo.
Uma implicação importante disso é que a Biossemiótica oferece uma ponte conceitual entre as ciências biológicas e as ciências humanas. Questões sobre o “significado da vida” deixam de pertencer unicamente à filosofia abstrata e ganham um contexto científico: se a vida é, em si, um processo de criação de significados, então compreender a vida envolve compreender como os organismos produzem e trocam esses significados. Isso traz intencionalidade e propósito (no sentido de finalidade biológica) para dentro do escopo da investigação científica, sem recorrer a explicações místicas. Por exemplo, a distinção entre “eu” e “outro” que cada ser vivo realiza – seja a fronteira imune que separa células próprias de invasoras, seja o reconhecimento de membros do grupo social – pode ser vista como um processo semiótico fundamental para a manutenção da identidade e da organização do organismo. Processos desse tipo dão sentido à estrutura biológica: a célula só faz sentido como unidade de vida porque interpreta continuamente signos internos e externos para manter sua integridade. Da mesma forma, um comportamento animal (como o canto de um pássaro) possui um significado biológico – atrair uma parceira, delimitar território – que é efetivado por meio de signos (sons) dentro de um sistema de códigos compartilhado pela espécie.
Em síntese, sob o prisma da Biossemiótica, a tradicional dicotomia entre matéria e mente é dissolvida ao reconhecer-se que já nos níveis básicos da vida há processamento de informação com valor para o organismo. A dinâmica dos signos nos dá uma abordagem mais rica dos sistemas vivos do que a divisão estrita entre propriedades “mentais” e “físicas”. A estrutura da vida, desde moléculas até ecossistemas, está entrelaçada a fluxos de signos que geram novos padrões, mantêm estabilidades e possibilitam evoluções. Assim, compreender a vida em sua plenitude implica compreender como os signos atuam na organização e evolução dos seres vivos, conferindo-lhes significados funcionais.
Conclusão
Retomando os pontos principais: a Biossemiótica apresenta a visão de que “a vida é a ação dos signos”, isto é, viver equivale a engajar-se em processos contínuos de semiose. Vimos que os organismos interpretam o mundo através de seus umwelten únicos, usando códigos biológicos para mediar informações, e que isso confere estrutura e significado aos fenômenos vitais. Essa síntese de ideias biológicas e semióticas traz consequências profundas para o estudo da vida. Se os processos sígnicos são fundamentais em todos os níveis da vida, então áreas tradicionais como a etologia, a ecologia e a biologia molecular ganham novas perspectivas ao incorporarem conceitos semióticos. Por exemplo, o comportamento animal pode ser reinterpretado em função de comunicação e significado, ecossistemas podem ser vistos como redes de troca de informação (semiosfera), e mesmo a evolução pode ser entendida não só como seleção de formas, mas também de padrões de informação que os organismos conseguem interpretar.
Além do impacto nas ciências naturais, a Biossemiótica promove um diálogo com a filosofia e as ciências humanas. Ao reconhecer a semiose como parte intrínseca dos processos biológicos, ela oferece um ponto de convergência para discutir mente, consciência, linguagem e cultura sob uma luz unificada. Entender a vida passa a incluir entender os signos da vida. Como sugerem Emmeche e Kull, ao conectar a semiótica à biologia de forma explícita, damos um primeiro passo para integrar as humanidades e as ciências naturais numa compreensão mais ampla da existência. Essa integração diminui a lacuna entre explicar a vida em termos de moléculas e compreendê-la em termos de significados.
A Biossemiótica nos legou uma mudança de paradigma: todo ser vivo é um agente semiótico. Essa ideia, além de fornecer novas ferramentas conceituais para a pesquisa (como vimos com semiose, umwelt e códigos biológicos), traz um componente quase poético à ciência – a noção de que há uma conversa incessante acontecendo na natureza. Dos signos químicos trocados por bactérias às elaboradas linguagens das baleias, a vida se revela como um processo comunicativo em múltiplas camadas. Reconhecer que a vida significa é reconhecer a complexidade inerente aos sistemas vivos. Isso nos leva a estudar a biologia não apenas pelo como (mecanismos), mas também pelo porquê comunicativo de cada interação. A Biossemiótica, ao enfatizar que a vida é tecida por signos, enriquece nossa compreensão científica e filosófica do mundo vivo, apontando para um futuro em que o estudo da vida e do significado caminham juntos de forma coesa e esclarecedora.
Referência:
EMMECHE, Claus; KULL, Kalevi (Eds.). Towards a Semiotic Biology: Life Is the Action of Signs. London: Imperial College Press, 2011.
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